terça-feira, 7 de junho de 2011

Eppur si muove

" A Inquisição condenou Galileu Galilei por ele acreditar, como Copérnico, que a terra se mexia e não era o centro do Universo. No século XVII, a Terra não parecia mexer-se, e era verdade segura que era o centro do Universo. 
Galileu, acusado de heresia, foi obrigado a negar que a terra se mexia. Foi condenado, preso, depois forçado a permanecer em casa, queimaram- lhe o livro. 
Nada disso, terá dito Galileu, impedia que a terra se movesse. Era um facto e continuaria a ser um facto, fosse qual fosse a opinião dos senhores daquele tempo.

A frase ficou na História, "eppur si muove".

A frase sobressaltou-me o espírito ao ouvir mais um dos debates sobre o aborto. Impressionou-me a ligeireza com que se ilude um facto, o ser humano vivo que é eliminado quando se faz um aborto. Fala-se do tema como se o facto não existisse. Ainda mais me impressionou o modo como se invoca a tolerância.
Como é que se pode invocar a tolerância quando a consequência do nosso acto é eliminar um ser humano, o bebé, que está ali, mal ou bem, não há volta a dar?
Só há uma explicação possível: ignorando o facto, virando a cara. Nestes termos, tudo se torna numa questão de tolerância: se o aborto não elimina nenhum ser humano, então não há o direito de não deixar ao critério livre de cada um a opção de abortar. Só que não é assim, "eppur si muove". Não é assim no domínio da natureza, dos factos, dos factos filmados pela ciência.

(...)

Tenho que aceitar que alguns pensem que é indiferente, que é um ser humano rudimentar, dá-se-lhe uma picada, tudo bem. Não penso assim, mas reconheço que esta versão dura do assunto tem, pelo menos, a virtude de não procurar ser hábil, é assumida, não se engana a si própria.

Também aceito a ignorância desculpável, a ignorância dos que acreditando com sinceridade que no aborto não se perde uma vida humana, sintam no seu íntimo que a questão se resume ao direito da mãe dispor do seu corpo e da sua vida e que é uma intolerância ser condenada por isso. Nos pressupostos deles, concordaria com eles.

Já tenho dificuldades em compreender que aqueles que têm consciência que uma vida humana está em jogo no aborto tornem livre e sem qualquer limitação esse acto e invoquem a tolerância para o permitir.

E mesmo se o ser humano que vai ser eliminado é um ser rudimentar, a tolerância está em ignorá-lo, ou em protegê-lo?

Para fugir à realidade dizem-se coisas impensáveis. Que não é bem um ser vivo, que é às 11 mas não é às 10 semanas, que os olhos às 10 semanas não são bem como se diz, que o espermatozóide também é vida, eu sei lá o que tenho ouvido. Tenta-se desfigurar culturalmente a evidência cientifica e humana que aquele ser é.

(...)
O aborto tem dois lados, tem dois dramas, a mãe e o filho. Devíamos conhecer os dois dramas antes de tomarmos uma decisão.

Por vezes, é melindroso o ponto de equilíbrio entre a defesa dos valores e a procura de solução para os dramas humanos. (...)

O bebé mexe-se, mesmo que o ignoremos. "Eppur si muove", é esse o problema."



António Pinto Leite

Retirado da revista -EXPRESSO

de 06 junho de 1998

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